segunda-feira, 6 de junho de 2016

SECA DO SERTÃO

Seca em Caicó, 112 anos atrás, matou muita gente de fome e crianças escaparam a base da garapa de rapadura,diz carta
A Tribuna do Norte publica, nesta edição de domingo, a íntegra de uma carta escrita há 112 anos atrás. Foi feita por um caicoense que não a assinou, portanto, é anônima, mas conta o horror de uma seca que abalou e matou pessoas em Caicó no ano de 1904. Opa. Apesar de terminar em 4, esse ano protagonizou uma das mais cruéis secas do Seridó. O documento foi publicado no jornal A República, periódico conceituado da época.

Vejamos os principais trechos da carta (respeitando a ortografia original) que foi publicada na secção Municípios (Caicó) de “A República”:

Vamos agora, rompendo este silêncio, dar notícias, as mais tristes e desoladoras, do nosso querido município, digno de melhor sorte; Estamos em fins de Março e até esta data, não se pronunciou o inverno, o que quer dizer, que estamos em plena secca!

As chuvas que cahiram n’neste município e seus arredores, foram de efeito nullo, nada produziram, nenhum recurso fizeram!

Na feira de 20 deste, os gêneros escasseiaram, e os que appareceram foram vendidos por preços exorbitantes, a saber: a farinha vendeu-se por 400 rs., o litro, o milho de 440 rs., o feijão por 800 rs., arroz, não houve. O clamor é geral! A cidade acha-se invadida por um numero elevadíssimo de imigrantes, deste e dos municípios circunvizinhos do Catolé do Rocha, Brejo do Cruz, Rio do Peixe, Pombal e até do Piancó, tudo do Estado da Parahyba, que tem chegado a esta cidade em procura de recursos. Da serra do Martins e Luiz Gomes também chegam imigrantes diariamente.

Os nossos recursos estão esgotados. Não há dia em que a cidade não seja invadida por uma leva de retirantes, que, esquálidos e andrajosos, imploram a caridade pública, e para não morrerem de fome, recorrem às raízes sylvestres, quando não encontram cachorro, gato e até couros de rezes mortas, para devorarem. Aqui, mesmo as pessoas de recursos, estão passando privações.

Si o nosso governo não for atendido em suas reclamações perante o governo federal, que nos auxilie para mitigarmos a fome de nossos patrícios, terá de desaparecer do mapa do Rio Grande do Norte, o populoso e laborioso município do Caicó.

Agora, que acaba de chegar a essa capital, uma comissão de engenheiros, para tratar da Estrado de ferro de Natal ao Ceará-Mirim, e d’outras medidas para attenuar os effeitos da secca, é preciso que o governo da União, se compenetrando d’isso, mande já e já, sem demora, um ou dois engenheiros d’esses, para o nosso sertão, acompanhando-os logo de recursos necessários, para conjurar a crise, estudar a planta da estrada em demanda de nossa zona, ou o serviço de açudagem, enquanto temos gente viva.

A estrada de ferro exclusivamente do Ceará-Mirim, para attenuar os effeitos da seca, não nos aproveita, no sentido de melhorar as nossas condições, afflictivas. O nosso povo, já exangue e em verdadeiro estado de inanição, não procura o agreste, onde os espera por certo a morte.

O recurso do sertão é a indústria pastoril e agrícola. Este anno aqui ninguém quer um garrote, dos poucos que restam, actualmente, nem de graça.

Da agricultura nada temos de esperar. O rio Seridó deu uma enxurrada e as vazantes nada produziram. Nas roças, nem sequer houve maxixes. Aqui não há mais uma vacca de leite, as criancinhas, dos que têm algum recurso, ainda estão se mantendo com a garapa de rapadura.

Contamos somente com o patriotismo dos que nos governam, como única esperança.

Tem havido aqui já diversos óbitos ocasionados pela fome! Agora mesmo o campanário da matriz dá signal de que um anjo voou para a mansão celestial, em consequência da fome!

O pae da creança veio a cidade pedir uma mortalha e declarou que, além deste filho, ficaram outros a morrer! Oh! meu Deus, não sei como descrever tamanhas scenas de miséria!

Aqui n’esta cidade, o povo só fala em retirar-se, si o governo não nos auxiliar, porque as pessoas, que ainda vão comendo, porém, já passando mal, e d’ando ainda alguma esmola, do pouco que lhes resta, vêem-se já em circunstâncias tão críticas a emigrar e talvez até a pé, a falta de cavalgadura.

Não se pode descrever as scenas, comovedoras, que presenciamos aqui diariamente.

O nosso município é populoso, tem uma população superior a quase mil almas, este povo todo sem recursos, condenado a morrer pela fome, é uma verdadeira calamidade! Dos municípios visinhos, como Serra Negra, por exemplo, nos chegam as notícias mais trágicas que se pode imaginar.

O governo da União deve cumprir a promessa garantida pela Constituição, mandando socorrer-nos, porque nenhuma calamidade pública equala-se a uma secca!

Aqui termino para não perder o correio.

Caicó, 29 de Março de 1904.


MAIS UM ANO DE SECA NO SERTÃO
O sertão está sempre em desvantagem
Que o tempo não tem favorecido
Com seu solo ardente e ressequido
É sombria e sem vida a sua imagem
Cinco anos seguidos de estiagem
Reduziu-se a zero a plantação
Está quase deserta a região
Com o povo migrando do lugar
Vai ser muito difícil suportar
Mais um ano de seca no sertão.

Secas verdes estão continuadas
Desde dois mil e doze até agora
Do sertão muita gente foi embora
As reservas de água estão minguadas
Com as temperaturas alteradas
Seca poço, lagoa e cacimbão
Têm açudes que a água no porão
Está suja e em breve vai secar
Vai ser muito difícil suportar
Mais um ano de seca no sertão.

Nunca mais o produto da lavoura
Foi à mesa do homem sertanejo
Que sem ter esperança e sem desejo
Não viu mais uma chuva benfeitora
Por a seca ser tão devastadora
Não há nada que brote desse chão
Acabou-se de vez a produção
E o gado não acha onde pastar
Vai ser muito difícil suportar
Mais um ano de seca no sertão.

Fica seco o mofumbo, o marmeleiro
Só é verde aveloz e macambira
Resultado da roça ninguém tira
Pela falta de chuva o ano inteiro
Goiabeira, mangueira e cajueiro
Não dão frutos devido a sequidão
Sem ter fava, arroz, milho e feijão
Resta em Deus confiar e esperar
Vai ser muito difícil suportar
Mais um ano de seca no sertão.

Vão desaparecendo os colibris
Os graúnas, xexéus e sabiás
Rouxinois, tico-ticos e pardais 
Aves de arribação e juritis
Ninguém vê mais nambu e nem perdiz
Nem peitica, canário e nem cancão
Não tem mais joão-de-barro e o carão
Sem a chuva ele fica sem cantar
Vai ser muito difícil suportar
Mais um ano de seca no sertão.

Autor: Zé Bezerra

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